Descobrindo o Budismo

O comportamento e a experiência dos seres vivos
Dependem da maneira pela qual eles os percebem
e os representam, bem como a si mesmos.

A vida do Buda

Nascido em uma região ao sul do Nepal, no séc. V a.C., o jovem príncipe Siddharta viveu a primeira parte de sua vida no conforto luxuoso da vida protegida do palácio.

Por ocasião de algumas saídas do palácio, teve quatro encontros que o fizeram se interrogar sobre o sentido da vida: um doente, um velho, uma pessoa morta e um religioso. Refletindo sobre a impermanência da vida, sobre a própria impermanência, considerou sua maneira de viver como insatisfatória, E, seguindo o exemplo dos religiosos de seu tempo, deixou seu palácio, dando início a uma busca espiritual, adotando o modo de vida de um asceta errante e dedicando-se á contemplação.

Começou estudando junto aos maiores mestres contemporâneos e, em seguida, sempre insatisfeito, prosseguiu sozinho a sua busca, consagrando-se durante seis anos a uma ascese rigorosa.

Renunciando, finalmente, a este outro extremo, em contraste com a vida no palácio, dirigiu-se a Bodhgaya, na Índia central, onde alcançou o perfeito despertar.

As Três Jóias

Atendendo a solicitações que lhe foram feitas, o Buddha dirigiu-se a Sarnath, perto de Benares, onde expôs seu ensinamento, o Dharma, pela primeira vez. Consagrou, a partir de então, os últimos quarenta e cinco anos de sua vida ao desenvolvimento dos ensinamentos em diferentes contextos.

Os que seguiram e praticaram o ensinamento constituíram as comunidades leiga e monástica, a Sangha. A partir dessa época, a Sangha preservou e transmitiu o caminho da realização espiritual enunciado pelo Buddha. Esta tradição viva chegou até os nossos dias por intermédio de diversas linhagens.

Por sua vez, os ensinamentos foram transcritos e chegaram até nós sob a forma de Cânones, agrupando em uma coleção os textos as exposições originais e os comentários sucessivos redigidos pelos grandes mestres da linhagem.

A Difusão do Dharma

A partir da bacia do Ganges, o ensinamento difundiu-se primeiro na Índia e depois pelo Sudeste Asiático, começando pelo Sri Lanka. Em seguida, difundiu-se em direção ao Norte: o Nepal, a China e, a partir desta, o Japão. Foi entre os séc. VIII e XII que o Tibete recebeu a herança do Budismo indiano, preservada integralmente até os dias de hoje. No final do séc. XX, a invasão do Tibete pela China provocou o êxodo de numerosos tibetanos para a Índia, dentre os quais os grandes mestres detentores da tradição. Graças a esses mestres a tradição viva tibetana tornou-se diretamente acessível para nós a partir dos anos 1970.

A Visão de Mundo

O ensinamento do Buddha define-se como um meio de obter a liberação do sofrimento e de alcançar a felicidade, relativa e última, a partir de um estado submetido à servidão e ao sofrimento. É a razão pelo qual é comparado a um caminho, um meio de progressão, de transformação.

Podemos distinguir nesse caminho três níveis associados a diferentes motivações, as quais se fundamentam em três perspectivas que servem de base a três tipos de objetivos e, portanto, de métodos utilizados para atingi-los.

Na perspectiva budista, as possibilidades de existência não se limitam à vida humana nem ao nosso mundo, e são classificadas em seis domínios ou mundos. Distinguimos três mundos superiores e três mundos inferiores.

Quanto aos mundos inferiores, nos infernos experimentamos inúmeras torturas e sofrimentos extremos de calor e de frio; os espíritos ávidos são torturados pela fome e pela sede; os animais sofrem principalmente pela estupidez e pelo medo de se devorarem. Quanto aos humanos, o primeiro dos três mundos superiores, há quatro sofrimentos principais: o nascimento, a doença, a velhice e a morte e numerosos outros sofrimentos, ou causas de insatisfação, secundários. Os semideuses, cuja principal emoção é o ciúme, o sofrimento está associado às disputas, e, quanto aos deuses, ainda que gozem de vida longa e plena, na época do esgotamento dos méritos recaem nos mundos inferiores.

Isso é o que chamamos o ciclo das existências. O “motor” que o alimenta é ilustrado por três figuras no centro de um círculo, que representa o ciclo das existências: um porco, um galo e uma serpente, simbolizando, respectivamente, a ignorância, o desejo e o ódio.

Os Atos Nocivos e os Virtuosos

Sob a influência dessas três causas iniciais são realizados atos pelo corpo, palavra e mente, que podem ser virtuosos ou nocivos, conforme seus resultados se traduzam em felicidade ou sofrimento para si e para os outros.

Distinguimos, assim:

Três atos nocivos provocados pela mente: a ignorância, a cobiça, a malevolência; quatro atos nocivos provocados pela palavra: a mentira, a maledicência, que visa criar a discórdia, as palavras duras e ferinas, as palavras inúteis; e três atos nocivos provocados pelo corpo: a morte, o roubo, a má-conduta sexual.

Os atos virtuosos são o contrário dos nocivos:

Da mente, o desenvolvimento da sabedoria, o contentamento, satisfação, a benevolência, o amor e a compaixão. da palavra, a veracidade, a linguagem conciliadora, visando facilitar o entendimento e a harmonia, a linguagem amável, as palavras significantes e úteis; do corpo, a proteção da vida, a generosidade, a conduta harmoniosa nas relações entre casais.

As Doze Causas Interdependentes

A prática desses atos vai influenciar nossas relações com os outros e nosso meio- ambiente, determinando nossas condições de existência nesta vida e induzindo as das existências futuras. Esse processo de interação e retroação é explicado pelos doze elos de interdependência que são ilustrados por doze imagens na periferia da roda da vida.

É a lei do carma, ou mais precisamente em tibetano “le-gyu-dre”, os atos, suas causas e seus frutos ou resultados, que serve de fundamento à ética.

Uma constatação fundamental do Buddha é que “nada se produz a partir de si mesmo, tudo é resultado de diversas causas, tanto os fenômenos materiais quanto as experiências vividas”. Deduz-se a partir daí que se quisermos obter um resultado será necessário acionar as causas que o produzirão. Do mesmo modo, se não quisermos que um dado resultado ocorra, não devemos produzir suas causas.

Sendo os fenômenos e as experiências assim produzidas, eles se inscrevem no ciclo do tempo. O presente é o resultado de todas as causas passadas e os atos presentes tornam-se, por seu lado, as causas da realidade vindoura.

Sendo as causas múltiplas e em interação, uma realidade dada não pode ser permanente, o próprio presente estando em constante transformação.

Pelo conhecimento da lei das causas e dos resultados dispomos, então, da liberdade de determinar o que será o futuro, fazendo uma escolha consciente, inteligente e responsável de nossos atos.

Resumindo o princípio da ética, podemos dizer que uma atividade é dita “virtuosa” quando está orientada para o bem do próximo; produzirá um resultado feliz para nós e para os outros. Uma atividade não-virtuosa baseia-se numa atitude egocêntrica, nas paixões e ações que elas induzem. Produz sofrimento para os outros, sofrimento que nos retornará.

A tradição viva não se resume a um enunciado teórico mais ou menos verificável. Tem por objetivo favorecer o desenvolvimento do discernimento individual associado ao desenvolvimento do sentido da responsabilidade e, desse modo, aumentar nossa autonomia, nossa liberdade em relação aos diferentes determinismos. Para isso, a tradição viva coloca à nossa disposição um certo número de ferramentas, pontos de referência, métodos, que podem nos ajudar a melhor nos situarmos e escolher consciente e voluntariamente nosso destino.

Os Três Caminhos e sua Motivação

Aplicar os princípios das relações entre os atos e os resultados para não cair nas condições inferiores e se beneficiar das alegrias dos mundos superiores é, de algum modo, “saber viver bem no samsara”! Corresponde a uma motivação de primeiro nível: a busca de felicidade em condições de existência agradáveis. Ela é legítima e os fundamentos do ensinamento do Buddha permitem acolhê-la.

No nível seguinte de motivação, dito do Hinayana, considera-se que mesmo os renascimentos felizes, como os entre os deuses que gozam de vida muito longa e muito feliz, são insatisfatórios, por causa da impermanência. O esgotamento das causas que induziram- nos à existência no mundo dos deuses conduz ao renascimento em condições menos felizes, caracterizadas pelos três tipos de sofrimento.

Quais são os três tipos de sofrimento?

  1. O sofrimento manifesto como doença, um acidente corporal que produz dor física, ou ainda sofrimentos mentais, classificados pelos textos como “não obter o que se deseja, estar separado do que se quer etc.”
  2. O sofrimento devido à mudança de uma experiência agradável em desagradável, como uma boa refeição seguida de indigestão. Ou ainda sua ausência de duração, chamada de impermanência. Chegando ao término as causas que produziram um fenômeno, este também se esgota. Esta impermanência é percebida como característica de todos os fenômenos condicionados.
  3. Toda experiência condicionada sendo impermanente é por isso mesmo considerada insatisfatória.

A percepção e a compreensão desses três tipos de sofrimento estendem-se do mais evidente ao mais sutil.

O objetivo, nessa perspectiva, é a busca da liberação das existências condicionadas, ou samsara, para atingir o estado não-condicionado chamado de “nirvana”.

O caminho que conduz de um a outro é chamado de “nobre caminho em oito ramos”. Os meios utilizados neste caminho resumem-se em três treinamentos: a ética, a meditação e a sabedoria.

Uma imagem para ilustrar esta passagem é a de uma balsa que permite atravessar de uma margem para outra de um rio, da existência condicionada para a liberação.

Quando esse tipo de motivação está centrado principalmente em si mesmo, tornando- se uma busca de liberação individual, é dita inferior. Ela torna-se a motivação do caminho superior, Mahayana, quando aspiramos a atingir o perfeito estado de Buddha para poder liberar todos os seres do sofrimento e estabelecê-los na felicidade relativa e última. Este caminho baseia-se na realização da vacuidade de si mesmo e de todos os fenômenos, unida à compaixão. Aquele que o segue é chamado de Bodhisattva, isto é, aspirante ao Despertar. Os meios utilizados são igualmente os três treinamentos desenvolvidos nas seis perfeições ou paramitas.

O Vajrayana, veículo adamantino ou Tantrayana, tem como base o Mahayana. Ensina-se nesse veículo que, do ponto de vista último, a natureza essencial da mente do Buddha é idêntica à nossa própria mente: esta tem as qualidades de vacuidade, claridade e não-obstrução.

A paramita da meditação aí é enriquecida de técnicas que compreendem as fases de geração e de conclusão, fazendo com que o corpo, a palavra e a mente participem ativamente na disciplina espiritual. A prática desses métodos permite atingir em tempo muito mais curto o objetivo do Mahayana.

Esses três grandes aspectos do ensinamento do Buddha não se contradizem e correspondem a três elementos que dão suporte um ao outro. Uma ilustração utilizada é a de uma tigela que corresponderia ao Hinayana, a água nela contida ao Mahayana e o reflexo da lua na água ao Vajrayana. Embora este último forneça uma imagem mais fiel da lua, os dois outros são indispensáveis para que o reflexo seja possível. Também, a base deve ser adquirida antes que possamos nos situar num nível mais elevado.

Assim, no nível da ética, os primeiros preceitos – não matar, não roubar etc. – têm por objetivo evitar fazer mal aos outros. Esta atitude precede, naturalmente, a motivação de contribuir para o bem estar deles.

Progressão no Caminho

A atitude mental central do Mahayana é a “mente do Despertar”, a bodhicitta. Ela é em essência o coração dos ensinamentos, baseados no amor e na compaixão.

Consideramos que por vidas incontáveis todos os seres foram nossas mães e nos trataram com ternura e benevolência. Agora, sob o poder da ignorância, das paixões e do carma, embora desejando a felicidade, acabam produzindo a própria infelicidade. É natural, portanto, que para retribuir a bondade deles, desejemos que sejam liberados do sofrimento e possam gozar da felicidade relativa e última.

Assim como um médico que deseja curar um doente precisa adquirir antes as competências necessárias, precisamos seguir o caminho do Despertar para atingir o estado perfeito de Buddha.

Com base na atenção e na vigilância desenvolvemos primeiro uma boa compreensão da causalidade que serve de base à ética. Para sermos eficazes, o estudo deve ser seguido da análise e da reflexão, que permitem integrar e aplicar o que foi entendido conceitualmente.

Essas três etapas, indispensáveis para conduzir ao fruto, ou resultado, são chamadas em tibetano tö, sam e gom. A primeira e a segunda correspondem à visão ou base; a terceira à meditação ou conduta relativa ao caminho.

Esforçamo-nos, assim, no dia-a-dia, em evitar os atos nocivos e praticar os atos virtuosos. Geraremos e desenvolveremos desse modo a bodhicitta da aspiração, que será acompanhada pela bodhicitta da aplicação, a prática das seis paramitas ou virtudes transcendentes.

As paramitas da generosidade, ética, paciência, perseverança e energia facilitam o acesso à quinta paramita, a da meditação, que consiste no estabelecimento de um estado mental de calma e clareza, de concentração desprovida de torpor e agitação. Sobre a base dessa calma mental – shine, em tibetano – desenvolveremos um discernimento analítico e contemplativo sobre a natureza do eu e dos fenômenos. Deste provém a sexta paramita, a sabedoria ou conhecimento transcendente, que resulta da visão superior, hlaktong em tibetano.

Portanto, a sabedoria refere-se aqui a um reconhecimento, uma visão intuitiva direta adquirida com base na experiência meditativa. É a combinação desta com as cinco outras virtudes que as transformarão em “virtudes transcendentes”.

Do ponto de vista do objetivo ou resultado, fala-se dos dois corpos do Buddha: o corpo último ou dharmakaya e o corpo de forma, este, em realidade, dois corpos: o corpo de glória ou sambogakaya e o corpo de emanação ou nirmanakaya.

Do ponto de vista do caminho, a realização desses corpos se obtém pelas duas acumulações: de mérito, ou virtude correspondente à pratica das cinco primeiras paramitas, e de sabedoria, que corresponde á última paramita. Inicialmente, começamos por praticar principalmente a primeira acumulação. Em seguida, as duas ao mesmo tempo.

A realização dos dois corpos permite a realização do duplo benefício: o de si mesmo, pela realização do corpo último e o dos outros, pela realização dos dois corpos formais.

Relações entre os Diferentes Aspectos

O caminho do despertar baseia-se na prática da ética que consiste em se evitar causar mal aos outros e a si mesmo, estando inspirada no amor e na compaixão.

A meditação ou estabilidade mental permite desenvolver a visão penetrante que dissipa a ignorância, a qual é a causa inicial da existência condicionada. Como num céu límpido, sem nuvens, não há chuva ou granizo, a dissipação da ignorância é acompanhada da dissipação dos aspectos sutis das tendências fundamentais, das paixões e do carma.

O carma, as paixões, as tendências fundamentais e a ignorância são comparados a quatro véus que revestem a natureza da mente, assim como as nuvens encobrem o céu. Na progressão gradual, os véus são dissipados sucessivamente, do carma á ignorância mais sutil.

Assim, partindo-se da base, o estado de sujeição ao ciclo das existências, e seguindo o caminho, que consiste na purificação dos quatro véus pela prática das duas acumulações, obtém-se o fruto, os dois corpos de Buddha.

O objetivo do caminho ensinado pelo Buddha não é, desse modo, uma forma de “vazio” ou de dissolução. A única coisa que desaparece é a confusão e o sofrimento. Ao mesmo tempo, são desenvolvidos, como resultado da prática das seis paramitas, todas as qualidades do Despertar: o amor, a compaixão, a inteligência e incontáveis qualidades exprimindo-se espontaneamente para o bem dos seres.

Alguns Pré‐julgamentos Equivocados

O primeiro é o da fatalidade, que estaria ligado à noção do carma: tudo o que se produz estaria condicionado e, portanto, seria inelutável.

É uma perspectiva que pode conduzir a uma certa passividade, resignação em relação à existência, quando a atitude budista é justamente o inverso. As leis que regem as interações entre o funcionamento da mente, as ações e os resultados que eles induzem são bem analisados em detalhe e a situação presente é considerada como a resultante de tudo que a precedeu. Os elementos da situação presente não são considerados como imutáveis. Sua transformação e a determinação do futuro dependem das escolhas e dos atos realizados no presente.

O conhecimento do funcionamento da mente, dos atos e de seu resultado tornam-se, assim, um meio que favorece o desenvolvimento do sentido de responsabilidade e de liberdade de determinar seu destino.

O segundo é que o caminho espiritual exigiria o abandono da vida ativa e o retirar-se do mundo. Às vezes, pode ser benéfico retirar-se para consagrar-se em tempo integral ao estudo ao aprofundamento de uma experiência. O objetivo principal da prática, porém, é o conhecimento e transformação da mente. Em muitos casos isso só pode ser feito na relação com outros, sobretudo do ponto de vista do Mahayana, cujo objetivo principal é realizar o bem de todos os seres.

Do ponto de vista budista, o ser humano não é considerado como acabado naturalmente, cuja vida e atividade seriam largamente determinadas geneticamente, como é o caso dos animais. Da mesma forma, seu destino não é fixado arbitrariamente por qualquer divindade superior. O ser humano é visto como um ser cujo devir depende em grande parte dele mesmo e como alguém cuja justa compreensão de seu potencial, e os meios necessários, podem permitir atualizar e desenvolver qualidades como inteligência, criatividade, senso de responsabilidade e de solidariedade. Estas qualidades podem exprimir-se de modo construtivo em todos os domínios da existência com grandes benefícios tanto no nível pessoal como social.

Espiritualidade e Modernidade; Sua Santidade o Dalai‐Lama

Dos tibetanos, SS Dalai-Lama é sem dúvida o mais conhecido principalmente depois de sua obtenção do Prêmio Nobel da Paz, em 1989. Seu pensamento é bem conhecido graças ás diversas obras que escreveu. Mas, para bem compreendê-lo, é útil ter um certo conhecimento do pano de fundo tradicional do qual ele é o porta-voz.

Desde sua primeira viagem ao Ocidente, em 1973, ele assinalava que não via nenhuma contradição entre espiritualidade e progresso material. Já na sua infância ele havia manifestado um interesse pessoal pelas ciências e técnicas. Contudo, ele registra que o conforto material por si só não é suficiente para assegurar o contentamento e a felicidade. Estes dependem, em grande parte, do funcionamento da mente. O conhecimento e a transformação desta são precisamente o objeto do Dharma. SS Dalai-Lama pensa que essas duas ciências podem muito bem ser complementares e garantir assim para a humanidade o conforto e a felicidade tanto material como espiritual. Ele assinala a interdependência entre o funcionamento da mente e o comportamento entre este e a relação que se estabelece entre as pessoas e suas incidências nas relações sociais e no meio-ambiente. Enfatiza a importância do espírito de fraternidade e da solidariedade. Essas observações são a expressão da antiga tradição espiritual budista, sendo também conformes ao bom senso e à descrição dos fatos.

A referência à experiência direta, à verificação, é uma característica do Budismo desde sua origem. Não faz apelo a crenças, dogmas, mas convida a observar, refletir, examinar, verificar, experimentar por si mesmo.

Sua Santidade diz às vezes que há dois tipos de problemas: os problemas naturais, como as intempéries, as erupções vulcânicas etc., contra as quais nada se pode fazer, a não ser preveni-las o melhor que puder e remediar tanto quanto possível os estragos que causam; os problemas produzidos pelo homem, “made man problems”, que não são fáceis e os quais cabe a nós, por nossa inteligência e boa-vontade, tratar de evitá-los.

Natural e Potencial

A afirmação de que o homem é “naturalmente bom” parece contradizer os fatos. Se fosse esse o caso, por que há tantos conflitos e injustiças?

No contexto do Dharma, a palavra “natural” não se refere a uma lei biológica, nem a um hábito pessoal ou a um conformismo social integrado pela educação. Aqui, natural significa “inerente”, “potencial”, ligado a própria natureza do objeto.

As imagens utilizadas para ilustrar esse conceito são as da presença de óleo na semente de sésamo, da manteiga no leite ou do ouro no minério. Diz-se, assim, que é possível extrair o ouro do minério, mas não de uma pedra comum; a manteiga do leite, mas não da água. Pode-se limpar e fazer aparecer a brancura de uma concha, mas não de um pedaço de carvão.

É, portanto, uma referência à possibilidade de um resultado, após um processo que visa a atualizar uma qualidade que era potencial na natureza do elemento inicial.

Assim como um terreno inculto pode ser transformado em jardim botânico, também as qualidades humanas podem ser atualizadas pela educação, a aprendizagem e o treinamento. Uma vez atualizados, eles se tornarão “naturais”, no sentido de “habituais”, como a música para um músico, ou a condução de um carro por um motorista experimentado.

Contudo, não se trata de um condicionamento arbitrário: essas qualidades de compaixão e inteligência são consideradas como sendo o potencial natural do desenvolvimento humano.

A ignorância e a confusão, das quais provêm a cupidez insaciável e a hostilidade malevolente, são simplesmente consideradas como uma disfunção, algo como as doenças que convém tratar com cuidados especiais.

Claro que um fator determinante é a educação.

Psicologia, Espiritualidade, Religião

O valor das qualidades da mente como a vigilância, o discernimento, o sentimento de fraternidade, o contentamento, o sentido de responsabilidade, a inteligência, a sensibilidade, o amor e a compaixão, pode ser apreciado ainda fora do contexto dito “religioso”. Desenvolver tais qualidades só pode favorecer a liberdade, a felicidade e o bem-estar individual e coletivo. Esses elementos estão presentes na tradição budista, mas constituem um valor universal independente de contexto religioso.

O Budismo é uma tradição espiritual viva, muito rica e profunda, sua descoberta é recente e seu potencial é ainda muito pouco conhecido no Ocidente. Graças aos grandes mestres que os depositários atuais dessa tradição, por meio de uma transmissão ininterrupta desde a época do Buddha, podemos descobrir e aprofundar sua riqueza. Essa descoberta não se limita a um tema de estudo teórico, e pode tornar-se a experiência vivida de uma tradição viva.

Conclusões

Bem diferente dos sonhos fantasiosos de alguns, o Budismo, sem nenhuma dúvida, não poderá resolver miraculosamente todos os problemas individuais e coletivos atuais.

Mas, chamando nossa atenção para a mente e seu funcionamento, ou sua disfunção, colocando à nossa disposição a riqueza de meios de conhecimento e de transformação desenvolvidos ao longo de muitos séculos de experiência, essa grande tradição espiritual, o Budismo, pode nos ajudar a progredir de maneira muito positiva.

Concluindo, um comentário de Sua Santidade, o Dalai-Lama, acerca de um trecho escrito pelo mestre indiano Shantideva:

Nós não podemos ficar neste planeta permanentemente, eu em primeiro lugar. Aqui estamos como turistas e, no melhor dos casos, nossa estada durará cem anos. Eis por que, enquanto estamos vivos, devemos ter um bom coração, realizar algum coisa de útil e positiva. Quer vivamos alguns anos ou um século, seria verdadeiramente triste e lamentável agravar os problemas que afligem os seres humanos, os animais e o ambiente. O mais importante é ter um bom coração.

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