A Compaixão
Como a terra e os outros elementos
provêm imensamente e perpetuamente
de numerosas maneiras as necessidades dos seres.
Que eu possa de todas as maneiras possíveis
prover as necessidades dos seres que preenchem o espaço
até que todos atinjam o nirvana.
Bodhicharyavatara
Shantideva
A Compaixão
A compaixão, a bondade e o amor constituem juntos a atitude essencial da mente essencial do Mahayana, cujo fundamento é uma disposição de mente não egoísta orientada para os outros, aspirando ao bem e a felicidade de todos os seres humanos e não humanos, amigos e inimigos.
Os três níveis da Compaixão:
Distinguem-se três aspectos da compaixão:
- a compaixão referente aos seres,
- a compaixão referente a realidade
- e a compaixão sem referência.
Elas surgem sucessivamente.
A compaixão referente aos seres nasce com a percepção do sofrimento dos outros. É a forma de compaixão que se desenvolve primeiro e que nos faz aspirar profundamente colocar em obra tudo o que pudermos para ajudar todos os que sofrem. Ela nasce quando percebemos a dor e o sofrimento do outro. Não ser mais insensível aos sofrimentos dos seres e aspirar ajudá-los fazer tudo o que é possível para aliviar seu sofrimento é essa forma de compaixão.
A compaixão referente à realidade aparece com a experiência verdadeira da força das ilusões, quando percebemos como os seres criam seus próprios sofrimentos. Ela nasce quando vemos verdadeiramente como todos aspiram a felicidade e desejam evitar o sofrimento e como, não conhecendo as causas da felicidade nem os meios de evitar os sofrimentos, eles produzem as causas do sofrimento e não sabem cultivar as da felicidade. Estão cegos por suas ilusões. Suas motivações e suas ações são contraditórias. Fundamentada na compreensão da natureza ilusória da realidade, a percepção verdadeira dessa situação produz essa segunda forma de compaixão mais intensa e mais profunda que a precedente.
A compaixão sem referência é sem noção de sujeito nem de objeto e sem intenção; é a forma última da compaixão de um Buda ou de um grande Bodhisatva. Ela depende da compreensão da vacuidade. Não há mais referência a mim e ao outro. Essa compaixão age naturalmente, espontaneamente.
É importante conhecer esses três tipos de compaixão, compreender sua sucessão e começar a trabalhar no primeiro nível que é o mais diretamente acessível para nós.
Tonglen:
Transmigramos no ciclo das existências um número incalculável de vezes a tal ponto que todos os seres já foram nossos pais ou nossas mães. O Buda ensinou que eles foram nossos pais um número de vezes indefinido. Enumerar o número de grãos de areia que constituem a terra seria possível, mas não é possível contar quantas vezes todos os seres foram nossos próprios pais!
Para cultivar para todos os seres a compaixão e bondade pensamos inicialmente no amor que nossos pais nos deram, eles nos educaram, nos ajudaram, nos protegeram e em tudo o que eles fizeram por nós. Imaginamos o quanto ficaríamos tocados se a pessoa que nos é mais cara – geralmente nossa própria mãe – estivesse em um estado de sofrimento intenso diante de nós, não poderíamos permanecer insensíveis e faríamos em seguida qualquer coisa para ir em sua ajuda e a socorrer. É assim que se descobre uma capacidade de amor e compaixão que consiste em ser receptivo aos outros e desejar o seu bem.
Nessa disposição realizamos sempre a prática de tonglen, literalmente “dar e aceitar”, que nos treina em dar mentalmente ao outro todas nossas virtudes e toda nossa felicidade e aceitar em troca todas suas negatividades e sofrimentos. Praticamos isso inicialmente com pessoa que nos é mais próxima e pouco a pouco estendemos nossa meditação a todos os seres até incluir nossos inimigos. Depois consideramos que todos os seres do universo que foram, desde os tempos sem começo, nossos próprios pais e tiveram em relação a nós essa mesma bondade, esse mesmo amor, esse mesmo devotamento.
Se pudermos sinceramente vê-los assim e compreender que estão agora no oceano dos sofrimentos do samsara, nasce então espontaneamente o amor e a compaixão por eles e o desejo sincero de ajudá-los.
Maitri-Yogui e o cachorro:
Houve um grande lama Kadampa, Maitri-Yogui, um dos mestres de Atisha, que tinha uma grande compreensão da bodhicitta. Um dia ele estava com seus discípulos, dando um Ensinamento e ouviu-se não muito distante, uivos de um cachorro que depois calou-se. No mesmo instante, Maitri-Yogui deu um grito de dor, enfraquecendo-o ao ponto de desmaiar.
Todos ficaram espantados e o questionaram. Ele então mostrou uma grande equimose em suas costas e depois explicou que ele havia tomado para si o sofrimento do cachorro para liberá-lo. Sua realização da Bodhicitta era tal que ele tinha a capacidade de tomar para si concretamente da dor do outro.
A compaixão e a bondade permitem ajudar verdadeiramente o outro, quando podemos fazer qualquer coisa concretamente para ajudar quem quer que seja, nós simplesmente o fazemos; ou então nos dando conta de nossa incapacidade presente de verdadeiramente ajudar, fazemos a aspiração de progredir para o Despertar para adquirir as qualidades que nos permitirão em seguida ajudar verdadeiramente e profundamente. Meditando sempre assim desenvolvemos a aspiração de liberar todos os seres de seus sofrimentos e de estabelecê-los em um estado de felicidade verdadeira. É assim que se desenvolve a bodhicitta.
O amor universal
O Buda Sakiamuni em seu conhecimento superior ensinou sobre as seis classes de seres e seus sofrimentos específicos.
Os estados infernais com os horrores que assolam com o frio e o calor; para os espíritos ávidos, os horrores da sede e da fome; na condição animal, os sofrimentos do obscurecimento mental e da escravidão. No reino humano dominam os sofrimentos do nascimento, da doença, da velhice e da morte. Os deuses invejosos sofrem por suas discussões e todos os deuses devem transmigrar e descer as existências inferiores.
Todos os seres do samsara merecem nosso amor e nossa compaixão. Uma boa compreensão estende sua radiância a todos, sem distinção. Uma compreensão parcial limita-se àqueles tocados pela miséria. De fato, experimentamos facilmente a compaixão por um pobre, mas pensamos que os ricos, os poderosos, as pessoas aparentemente felizes não são objetos de nossa compaixão.
Uma compaixão justa dirige-se a todos os seres, sem esquecer os ricos e poderosos. Eles foram, como todos os seres, nossas mães e nossos pais em vidas passadas e cada um tem seus sofrimentos. A situação presente deles, suas riquezas ou seus poderes resultaram de um karma positivo anterior, mas são marcados por um forte senso egoico e por numerosas paixões.
Foi dito pelo Buda Sakiamuni:
A cobiça é a companheira das riquezas,
Os atos negativos são os companheiros dos poderosos.
Essa cobiça e esses atos negativos os conduzem aos mundos inferiores e seus respectivos sofrimentos. Essas pessoas também devem ser objetos privilegiados de nossa compaixão.
Em um primeiro momento, tentamos, pela meditação sentir e desenvolver esse desejo de ajudar, esse estado de compaixão por um ser ao qual seja fácil para nós. Em seguida estendemos essa atitude de bondade aos outros, a todos aqueles que encontramos em nossa vida cotidiana, depois gradativamente estendemos a todos os humanos e não humanos e ao limite mesmo para aqueles nos é mais difícil, nossos inimigos e aqueles que nos odeiam, sem nenhuma exceção.
O encontro de Asanga e Maitreia
Asanga estava em retiro, realizando as práticas do Buda Maitreia. Mas após seis anos de intensa meditação ele não havia obtido o menor sinal de sucesso e assim desencorajado, abandonou seu retiro e saiu. No caminho ele encontrou um homem que esfregava uma barra de ferro com um tecido macio.
− Que fazes? − perguntou ele
− Esfrego essa barra de ferro para afiná-la pois preciso de uma agulha.
Estupefato pela disposição e perseverança esse homem, pensou: Tanta diligência para uma coisa de tão pouca importância! Como eu posso faltar com isso para continuar a prática mais essencial?
Ele retornou então para seu retiro e meditou novamente sobre Maitreia durante mais três anos, sempre sem nenhum sucesso. Novamente desencorajado, ele deixou seu retiro e no caminho, encontrou dessa vez um homem que esfregava um enorme rochedo com uma grande pluma.
− Que fazes? − perguntou ele
− Esse rochedo faz sombra sobre minha casa, assim o esfrego para desgastá-lo e o fazer desaparecer.
Novamente disse a si mesmo: Como se pode dispensar tanta disposição para um objetivo tão absurdo? E pensou que era necessário que ele praticasse com muito mais disposição para que obtivesse o Despertar. Três anos mais tarde, sempre sem o menor sinal de sucesso na prática… completamente desencorajado, partiu. No caminho, ele encontrou uma velha cadela doente com o corpo coberto de feridas em supuração, infectadas por vermes os quais ela tentava desesperadamente livrar-se. Tomado por uma profunda compaixão por essa velha cadela ele quis ajudar, mas rapidamente percebeu que se tirasse esses vermes com seus dedos, os esmagariam. Sentindo igualmente uma grande compaixão por esses vermes e pensando, sem fazer mal a eles, retirá-los com sua língua. Ele superou sua repugnância, fechou os olhos e inclinou-se para lamber. Mas no lugar de encontrar as feridas, sua língua tocou o solo. Ele abriu os olhos e, em um halo de luz viu diante de si o Buda Maitreia. Estupefato, Asanga disse:
− Eis doze anos de prática que medito sobre vós e espero vos encontrar, porque me apareces hoje?
Maitreia lhe explicou que ele havia estado ao seu lado desde o início, mas seus numerosos véus o haviam até o momento impedido de vê-lo e foi somente hoje em sua grande compaixão que ele havia experimentado pela velha cadela que seus últimos véus haviam se dissipado. E acrescentou:
− Se tens dúvidas, prenda-me sobre teus ombros e vamos para a cidade.
Asanga pegou Maitreia sobre seu ombro e encontrando as pessoas da cidade perguntava a eles, todo contente:
− Veem o que está sobre meu ombro?
Mas ninguém via nada. Houve somente uma velha senhora cujo karma era particularmente bom que viu uma velha cadela doente com feridas em supuração!
Asanga tornou-se um grande mestre do Mahayana e Maitreia transmitiu a ele o ciclo de Ensinamentos conhecido como “Os Cinco Ensinamentos de Maitreia”.
As oito aspirações de um grande ser
Texto composto por Kyabdje Kalu Rimpoche
Pela força da verdade da bondade dos Supremos Refúgios
E pelas ações virtuosas e uma pura motivação
Que eu possa, de todo meu ser, fazer esforço para dissipar
Os múltiplos sofrimentos de todos os seres que habitam o espaço.Pela excelência das atividades virtuosas
Deste mundo e do além dele
Que eu possa, conforme a esperança de cada um
Realizar os desejos e aspirações de todos os seres.Que meu corpo, minha carne e meu sangue
E tudo do qual sou constituído possa
Contribuir, de maneira mais apropriada
Ao bem de todo ser senciente.Possa se dissolver em mim
Os sofrimentos de todos os seres, minhas antigas mães
E possam eles obter
Minhas felicidades e minhas virtudes.Por tanto tempo perdurar esse mundo
Que eu possa jamais ter
Ainda que seja um só instante
Um pensamento de malevolência pelos outros.Que eu possa sempre com disposição
Agir para o bem de todos os seres
Sem relaxar meus esforços diante da tristeza
O cansaço ou outros obstáculos.Para aqueles que tem fome e que tem sede,
Aos pobres e aos indigentes
Que eu possa naturalmente proporcionar
A abundância que eles aspiram.Que eu possa assumir o pesado fardo
Dos terríveis sofrimentos de todos os seres
Dos infernos e dos outros estados
E que eles possam ser todos liberados.